No dizer de Dante (1265-1321), o maior dom que Deus concedeu ao homem, criando-o, foi della volontà la liberta (Divina Commedia, Paradiso, canto V). E Cervantes (1547-1616), no Don Quijote (parte II, c. 58), assim se exprime a respeito da liberdade: con ella no pueden igualarse los tesoros que encierra la tierra ni el mar encubre. Isso não quer dizer que a liberdade seja um valor absoluto, pois os homens, exercendo-a, devem ordená-la para o bem, conformando-se à ordem moral e jurídica, sem o que a liberdade pode transformar-se em licenciosidade desenfreada. Cada um de nós é livre enquanto domina a si mesmo, é senhor de seus atos; do contrário, expõe-se a ser dominado e escravizado pelas paixões. Esse dom sublime, expressão do livre arbítrio (a liberdade do querer decorre de um juízo da inteligência, que esclarece a vontade), só o conseguimos exercer na sua plenitude mediante um esforço, uma luta, uma conquista. Luta não só contra os que nos querem tirar a liberdade, mas contra nós mesmos, dado que a podemos perder em vista das más inclinações, ante as quais cumpre estar vigilante. É de se lembrar o conhecido dito de Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.): video meliora proboque, deteriora sequor (vejo o que é melhor e aprovo, mas sigo o pior).
O individualismo acompanha, como traço característico, tanto o liberalismo político quanto o econômico. Este, como escola ou corrente doutrinária, é anterior a 1791 e remonta ao tempo dos fisiocratas. Em 1767, Dupont de Nemours publicava o livro Physiocratie, significando com esse termo o “governo da natureza”. Para ele, como para Quesnay (1694-1793) e Mercier de la Rivière (1720-1793), há leis naturais que regem a vida econômica, cuja espontaneidade deve ser respeitada pelos governos, daí resultando ampla liberdade de produção, de trabalho, de comércio. Cabe observar que, paradoxalmente, os fisiocratas apoiaram o despotismo esclarecido daquela época, fornecendo-lhe subsídios programáticos. Isso se explica por considerarem que os governos devem atuar fortemente para impor as leis naturais, e, além disso — propagando as “luzes” —, preparar, pela instrução, as novas gerações para conhecê-las e submeter-se a elas (donde a expressão despotismo esclarecido). As leis que aboliram as corporações foram atos despóticos de uma assembleia democrática, anunciando, desde os alvores da Revolução, o deslize do liberalismo para o totalitarismo. Ante os indivíduos a se defrontarem em regime de livre concorrência sem restrições e de liberdade de trabalho sem garantias para o operário, pois tinham desaparecido as autoridades sociais ou corporativas, ficava só a autoridade do Estado como árbitro exclusivo.
Consequências do individualismo liberal, em meio às novas condições de trabalho na indústria, foram, entre outras, a sobrecarga de trabalho nas fábricas, o desemprego, os salários vis, dando origem aos conflitos entre o capital e o trabalho (questão social), caldo de cultura para o desenvolvimento do socialismo.
Ao longo dos duzentos e poucos anos de aplicação dos princípios do liberalismo político, a crise do Estado moderno veio revelando, além de odiosas iniquidades, extenso cortejo de insegurança e intranquilidade na vida social, da qual não têm estado ausentes trágicos e longos períodos de esmagamento da liberdade, cujo apogeu é o Estado totalitário gerado no ventre da anarquia liberal.
Presentemente, estimulados pela queda do “socialismo real”, ventos revisionistas vêm soprando sobre correntes diversas de pensamento, levando-as, por vezes, a significativo contorcionismo ideológico, tanto do lado socialista quanto do lado liberal. Além do pretendido “socialismo democrático”, veio a apregoar-se certo “socialismo liberal” em que a proposta é conciliar uma igualdade social desejável com uma liberdade individual dita possível. Mas dado o fracasso do socialismo [mesmo quando rerotulado, no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), de socialdemocracia: na Alemanha, na Suécia, na França, na Espanha), vêm-se sobressaindo, presentemente (1996), liberais de várias tendências, que intentam reelaborar as ideias do liberalismo, especialmente na área econômica. Mais próxima do liberalismo do laissez-faire, laissez passer é a já mencionada concepção de Hayek e Friedman, corifeus do neoliberalismo, cuja proposta é a de um Estado mínimo, em que a lei da livre-concorrência constitui a expressão do exercício amplo das liberdades individuais. Já um “social-liberalismo” aponta para uma “liberdade vigiada” em que o Estado garante a livre-iniciativa, mas intervém para reprimir abusos do poder econômico que ferem a liberdade de mercado e levam ao monopólio e ao lucro arbitrário. O “social-liberalismo” pretende uma organização social em que a economia de mercado esteja aberta às exigências da justiça social, norteada pelo princípio de solidariedade.
Os propugnadores dessas novas versões do liberalismo — voltadas, mormente, para a função do Estado na vida sócio-econômica — mantêm-se, no entanto, estritamente fieis aos princípios do liberalismo político originários da Revolução Francesa.
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